Fatinha

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A (des) conexão

In humor on 30/03/2024 at 4:12 PM

Toda essa modernidade digital é a maior onda, se usada com moderação. Isso causa dependência, os efeitos colaterais são siderúrgicos. Muita gente esqueceu que existe vida fora da internet e que não estar on line não significa que você está morto.

Houve um tempo, não se se você se lembra, em que as pessoas conversavam. As cordas vocais eram usadas, não enferrujavam, havia um vocabulário, as palavras eram articuladas, a gente até conseguia formular uma frase completa!

E o contato visual? Você pegou essa época de ouro, quando, além das palavras, a gente aprendia a ler o corpo do outro, as expressões faciais? Tá, eu sei que já foi inventada a chamada de vídeo, mas sei também que muitos cabeças de bagre não trouxeram no seu código genético uma substância chamada Simancol. Essa substância, que não está à venda nas farmácias, serve, entre outras coisas, pra inibir o comportamento invasivo e acabar por dar flagrante no amiguinho pelado dançando o ragatanga no meio da sala.

Quem não é tão vintage como eu, certamente deve ser contemporâneo do telefone. Então, quando a gente queria falar com uma pessoa e não conseguia encontrar pessoalmente, telefonava. Garanto que essa experiência todo mundo viveu.

Sabe do que mais sinto saudades? De quando as palavras mal interpretadas ou uma sentença mal formulada podia ser esclarecida sem precisar fazer um Podcast acompanhado de uma apresentação em PowerPoint explicando o que você quis dizer. Nem precisava de editor de texto ou da tecla Del. Era só uma questão de dialogar e não monologar numa telinha, sabendo que o outro tá tão puto que nem vai visualizar a mensagem.

Nada contra o WhatsApp. Uso muito, inclusive. Acho útil mandar e receber mensagens em tempo real, poder dar um “e aí? tudo bem? tudo bem por aqui tb. ó. me lembrei de você. bj”.

Dá pra mandar um recadinho rápido sabendo que se o receptador não respondeu é porque não teve oportunidade, mas o recado tá dado (embora existam os ansiosos patológicos ou ególatras contumazes que acham que temos que responder à qualquer mensagem enviada pelo seu umbigo em, no máximo, cinco segundos. senão, corremos o risco de receber mais vinte e cinco mensagens desaforadas e depois fingirmos não ouvir as outras vinte e cinco chamadas de voz.). Graças aos deuses da fibra ótica, temos a possibilidade de ignorar o interlocutor se for um chato de galochas.

Pra quem gosta de um bom barraco de três andares, pode usar as mensagens arquivadas pra jogar na cara do outro que ele falou o que ele jura que não falou (se bem que agora tem a tal da mensagem temporária, o que atrapalha um pouco).

Dependendo de nossa capacidade cognitiva, dá até pra acompanhar mais de uma conversa sem misturar as estações. Mas, é preciso tomar cuidado e usar o desconfiômetro calibrado com sensibilidade pra sacar quando a criatura infeliz que mandou aquela textinho precisa do seu foco total.

Tem que ser criterioso. Não dá pra acolher aquela pessoa que está na merda total e ao mesmo tempo estar jogando Candy Crush, vendo o vídeo no Youtube, acompanhando quem aquela ilustre desconhecida tá comendo no momento e enquanto isso dar uma atualizada no seu status informando aos outros o que está fazendo nesse exato segundo. Não dá. Está provado por neurocientistas que essa coisa de multitarefa não existe. O que existe é compartilhamento de atenção. Você desliga uma chave, liga a outra, desliga, liga a outra e assim por diante. Nossos neurônios não são dão conta de mais de uma coisa de cada vez. Em certos casos, dá curto circuito. Tarefas mal executadas. Pode pesquisar. Se quiser, empresto uns livros muito interessantes sobre o tema.

Pois é. Se você recebe uma mensagem de uma alma desesperada e, naquele momento está tentando ser cordial com seu chefe pé no ovos, acabar o último parágrafo daquele livro de quinhentas páginas ou seu filho resolveu trazer quinze amigos pra almoçar e não dá pra mandar todo mundo tomarnocu, peça licença, tranque-se no banheiro pra poder acudir.

Às vezes é absolutamente impossível, eu sei. Você tá no meio de uma entrevista de emprego depois de três anos espalhando currículo, ou na frente da Central do Brasil à cinco e meia da tarde e não quer perder a vida por causa de um celular ou o no meio de uma vídeo conferência dando uma palestra na ONU sobre o aquecimento global. Tá certo. Mas avalie a urgência/gravidade da situação e salve aquele pobre que está se rasgando todo de aflição e precisa de você. Meus amigosdeféirmãoscamarada fazem isso sempre. Obrigada, a propósito.

Se der, faça uma ligação. Ouça. Fale. Use suas cordas vocais enferrujadas, tire a cera dos ouvidos e descanse seus dedinhos hipertrofiados. Ainda não foi proibido conversar de verdade.

E, aproveitando o gancho, preciso confessar que, além de ser uma preguiçosa digital (reparou que as edições do Brógui têm a periodicidade de uma gestação de elefante?), não conseguir memorizar nenhuma das quatrocentas mil senhas que temos que utilizar todos os dias, tenho uma certa implicância com esse esses apps que devoram nossa privacidade como um refugiado famélico.

Tá, eu sei. Têm mil e uma utilidades, informações até interessantes, ou você precisa trabalhar com isso senão sua carreira não vai pra frente. Mas, como disse, implico. Por que? Porque salvo raras e honrosas exceções, os usuários desenvolvem uma compulsão quase que esquizofrênica de divulgar quase tudo o que fazem (quase tudo porque ninguém joga no ventilador as derrotas, só os momentos de glória).

Outro sintoma patológico é a fixação em fuçar a vida de todo mundo, inclusive de quem nem sabe que você nasceu, tá cagando pra sua opinião e só quer um zilhão de likes pra ganhar uma graninha. Se bem que tem gente que divulga detalhes da sua vida pessoal e ainda reclama que os outros se metem nela. Ué! não entendi. Pode olhar, mas não pode comentar? Não foi você que autorizou implicitamente que todos os habitantes do planeta participassem da sua existência?

Eu, enquanto excluída digital assumida, fico besta quando vejo alguém, no meio de um show, com os olhos colados na telinha do celular e os dedinhos nervosos digitando ou rolando a tela. Alguém aí, certamente mais inteligente do que eu , deve saber a explicação para o cidadão sair de casa, gastar dinheiro, passar perrengue no trânsito e não conseguir passar hora e meia sem conferir se tem alguma coisa mais legal rolando fora dali. Foge da minha compreensão, alguém ficar interagindo com gente que não está presente ao invés de fazer o óbvio que é assistir a porra do show com o miserável que o acompanhou e ainda assim está sozinho. A mesma dúvida me assola no cinema, nos restaurantes, na praia, seja lá qual for o lugar que se escolha pra ir.

Radical? Sim. Não faz nenhum sentido pra mim. Nada que esteja acontecendo durante aquelas horas ou minutos, vai deixar de acontecer se você não estiver tomando conta. O mundo não vai acabar (ou vai e você não pode fazer nada pra impedir) enquanto estiver off line. Se assim o fosse, a humanidade teria sido extinta quando não havia internet, celular, ou mais ainda, quando não havia sequer um telefone. Pronto. Falei.

Vou tentar habilitar os comentários para interagirem comigo. Não prometo conseguir. Se não der certo, me liga.