Fatinha

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No sapateiro

In humor on 27/03/2010 at 7:05 AM

Querido Brógui,

Você pode achar estranho, demodé ou coisa do tipo, mas ainda existem sapateiros no mundo e pasme, gente que, como eu, manda botar meia-sola na sandália.  Sabe aquela sandalinha que não machuca nem que você ande o dia inteiro? Então: você, em sã consciência, amando seus pés como amo os meus, jogaria a peça fora só porque a sola rachou de tanto usar e está tão gasta que você derrapa em qualquer curva? Duvido.

A loja, olhada por fora, está em ruínas. A marquise ameaça desabar a qualquer momento e a fachada está só no tijolo. Olhada por dentro, é assustadoramente imunda. Mais imunda do que qualquer outra loja onde o sapateiro exerce seu ofício. Sim, todas elas são nojentas. O balcão apinhado de restos de couro, tecido, cola. A mesa de trabalho, pior ainda. Sapatos recauchutados misturam-se despudoradamente aos arrebentados. Sapatos rejeitados pelos seus donos, que mandaram consertar e mudaram de ideia, jazem alí, abandonados à própria sorte esperando que alguém os resgate. O cheiro de poeira mistura-se ao de chulé e ao de cola (famosa por ter outro uso que não remendar sapatos e bolsas). Pelas paredes, mais sapatos, esses feitos por encomenda, creio. São botas estilo drag queen ou passista de escola de samba.

Do meio do caos sapatício emerge ele, o sapateiro, tão sujo quanto todo o restante do cenário. Nem se ele tomasse um bom banho, o que acho que não faz há décadas, nem que ele ficasse de molho na água sanitária misturada com cloro puro, nem assim aquele encardido de sua pele sairia. Com a truculência característica de todo sapateiro, põe os óculos na ponta do nariz, diz o preço, escreve meu nome na sola da sandália, dá as costas e volta a sentar no seu banquinho para terminar o almoço que eu sem querer havia interrompido.

É essa a lembrança que guardo dos sapateiros e de suas lojas dos idos de minha infância e é assim que permanecem até hoje. Que bom.

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