Querido Brógui,
Essa edição é de 2004. Em 2003? Sei lá o que estava fazendo. Que esquisito… Aqui, pela primeira vez, o texto é endereçado ao Querido Diário. Ainda não tem o tom que tem hoje, mas está bacaninha.
“Querido Diário
Minha mãe é a prova de que apenas não muda ou não aprende aquele que de fato não o quer ou então aquele que já morreu (daí não é uma questão de querer ou não).
Quando vejo alguém dizer que “sempre fui assim e agora estou muito velho para mudar”, olho para minha mãe e vejo que não é verdade. Quando vejo alguém dizer que “ninguém muda”, olho para minha mãe. Olho para minha mãe e vejo uma pessoa que tenta muito e quase sempre consegue entender coisas que, para a sua geração, são mesmo complicadas de digerir. E digo de novo: as coisas que ela não reformula em sua vida, não é porque ela está velha, mas porque ela não o quer. Ela repensa e decide que aquele juízo que tinha sobre o assunto continua valendo. Ela opta por não mudar seu comportamento.
Tenho conversado muito com ela e agora, de uns três anos pra cá, não me surpreendo tanto com as coisas que me diz. Me surpreendia muito antes, porque tinha uma idéia preconceituosa sobre o que ela pensava acerca de determinados assuntos. Preconceito puro, porque na maior parte das vezes, o que eu achava que ela achava não tinha nada a ver com o que ela achava de verdade. Caí das nuvens várias vezes, agora caio menos, mas ainda caio.
Ontem (mais uma vez) ela me pediu perdão por todas as vezes que me bateu. Acho que não foi tanto assim, porque realmente não me lembro. Só lembro do tal chinelo que ela comprou na terrinha, com sola de pneu. Mas acho que ela só usou uma vez e o que ficou foi a lembrança do medo de apanhar e não propriamente da dor. Falei isso para ela, que não me lembrava se tinha apanhado muito e ela disse não saber o que é bater muito ou bater pouco. Bater já é errado, porque a criança é pequena e a mãe é grande, de qualquer forma é covardia.
Ela me pediu perdão porque não teve paciência comigo e com meu irmão como deveria ter tido. Que às vezes batia com raiva porque os outros faziam queixa da gente e ela ficava com vergonha. Às vezes batia porque sabia que meu pai iria brigar com a gente e ela se antecipava.
Como são as coisas, né? Ainda hoje ela pensa que poderia ter sido melhor mãe, que poderia ter feito diferente.
Mamãe, criança não vem com manual de instruções e na maior parte das vezes, se você cometeu erros, estava convicta de que fazia o que era melhor para seus filhos. Com certeza hoje você seria uma mãe diferente. Melhor? Pior? Diferente. Diferente porque já viveu outras situações e já aprendeu outros repertórios. Não há como voltar no tempo e tentar remendar o que já está feito. Na época em que éramos pequenos você não sabia fazer de outra forma, fez o que sabia fazer, como sabia fazer e certa de que agia certo. Além do mais, estava sozinha aqui no Rio, sem sua família, sem seus amigos, sem ninguém para lhe dar uma orientação ou uma ajuda.
Não sei se o que digo serve para aliviar seu coração do arrependimento e da culpa que sente, mas saiba que lembro mais dos livros que me deu para ler do que das palmadas. Lembro mais das brincadeiras de sombras que fazia quando faltava luz do que das broncas. Lembro mais dos trabalhos escolares que fez comigo do que dos castigos que tenha levado.
Lembro da sua expressão de tristeza quando não tinha grana pra me comprar roupas de boutique que minhas coleguinhas tinham e de como se esforçava para costurar alguma coisa que eu gostasse de usar (e eu nunca gostava).
Lembro de você me carregando no colo, com quase dez anos de idade, porque a escola era longe e eu reclamava que estava cansada de andar.
Lembro do domingo no Jardim Zoológico, no Aterro do Flamengo, da farofa na praia de Paquetá. Lembro do bolo que me ensinou a fazer e das festas juninas que organizava pra criançada da vizinhança vir brincar conosco.
Disso tudo eu me lembro, mas as palmadas… nenhuma delas ficou na minha memória.”